domingo, 8 de agosto de 2010

Cama de pedra

Querido Desconhecido,

Eu me entreguei. Afoguei-me nas lágrimas das lâminas, afoguei-me nos teus ditos que têm tanto de lindos e tanto de crus: partiram-me em mil pedaços, tão crus pedaços... E agora nada posso além de te entregá-los junto com palavras minhas, imaturas minhas, que tremem ao sair junto da fumaça dos meus pobres lábios; pintei-os com o vermelho das lágrimas, meu querido, e agora nada penso em fazer.

Amo tuas mãos, aquelas que esculpem e moldam as letras em qualquer ar, em qualquer estação; e se calejam umas nas outras, sem medo de um ferimento ainda maior. Mãos de escultor, coração de pedra: a única que não consegue tocar, a única pela qual ainda escorre um tanto mais de meu rubro.

Oh, desconhecido, como pôde matar-me por dias com essas lâminas afiadas? Como pode sussurrá-las ao meu ouvido durante a noite, perturbando meu pouco sono e impedindo-me de pigarrear o que se restou da minha garganta a dentro? Como faria eu para não assassinar um dia após outro? Como não tremeria ao temer teus cabelos e olhar embaraçados?

Asfixio-me em papéis, não mais em lenços, esperando que a chuva me lave o teu cheiro do corpo e a loucura de tentar encontrar entre os embaralhos das letras as palavras que nunca encontrei. Penso nos sons que não sei emitir, fico a escrever meus tão magros e secos pensamentos, pondo minhas mãos para dentro da água congelante que é teu corpo.

Que é que faço agora? Meu amar não passa de um passatempo, uma desculpa para continuar cedendo ao brilho metalizado, tendo a boca úmida e olhos petrificados.
Hipnotizo-me. Hipnotizas-me. E qualquer cama é pequena demais para mim.

Aflição.

Lágrimas de lâminas

Minha doce aflição,

Eu conto, de propósito, histórias com finais tristes para observar, sem propósito, o quanto você é capaz de descontar em mim com o começo do seu choro. Adoro ver o teu rosto se desfazer aos poucos, como poucos. Adoro ver você se entregar como louca aos loucos. Adoro quando o teu olhar começa a ficar pesado e quando a tua boca começa tremer de leve. Adoro quando as tuas sobrancelhas mudam de direção, quase se perdendo – quase não reconhecendo esse seu novo rosto. Adoro ver você chorar porque sei que o que sai desses olhos não são lágrimas – como qualquer mortal – mas lâminas.

Suas lágrimas são lâminas que nascem de um sentimento morto. Que cortam o seu rosto em linha reta. Linhas de sangue. Que abrem teu rosto e deixam expostos os teus sonhos, teus pesadelos e teus amores escondidos. Elas ainda deixam visível para qualquer um, qualquer imprecisão, qualquer indecisão, qualquer traição – seja você traída ou traidora. Também sei que essas lâminas nascem em algum lugar por dentro dos teus olhos tristes, em algum lugar imaginário – talvez nas pálpebras superiores. Perfuram sua pele com a delicadeza de uma história de amor e amam delicadamente cada rabisco que fazem quando são derrubadas indelicadamente pelo seu choro, às vezes efêmero, às vezes infinito. Agora eu entendo porque chorar dói. Quando você chora os teus olhos se entopem de sangue. Não conseguem enxergar um palmo à frente. Não conseguem enxergar um sentimento à dentro. Por isso seguem sem rumo e sem mim em direção ao chão. Atravessam as suas costas sem pedir licença, deixando para trás desenhos estranhos de figuras desconhecidas. Figuras que se entregaram e você ignorou. Figuras que te ignoraram e você se entregou. Figuras. Apenas figuras. Figuras desfiguradas. Desenhos desanimados. Todos eles expostos nas suas costas. De propósito – para que você não possa vê-los, apenas senti-los e saber que eles estão ali te incomodando ou não, te maltratando ou não, te seduzindo ou não, te desejando ou não, te humilhando ou não.

As lâminas acabaram de alcançar o chão. Elas pingam como gotas de mercúrio numa ferida que não tem cura nem cicatriza. E caminham como um rio solitário, sem margem, pela solidão do seu quarto. E tentam alcançar alguém. E alcançam alguém em vão. Elas não têm os braços longos. Elas não têm as mãos firmes. Não alcançam nada. Não seguram ninguém. Apenas passeiam como se não incomodassem os que passam pelo seu redor. As lâminas se espalham sem dó. Sem piedade. Como se fossem a extensão do seu corpo. Como se fossem veias descontroladas e perdidas. Veias que buscaram fora do seu corpo um corpo parecido com o seu. Um corpo que tenha a mesma estatura, o mesmo peso, as mesmas medidas, mas que tenha mais sangue, que tenha mais costume com a dor, que seja capaz de sofrer mais. Um corpo modelado para a dor. Uma dor que é muito maior que você. Uma dor que é muito maior que o seu chão.

Essas lâminas que se desmancham sem parar, manchando as roupas, os pés, o piso e o tapete, manchando os papéis, os retratos, os fatos e os sapatos, secam, de repente, sem avisar como se nunca tivessem nascido, como se nunca tivessem sido escorridas, como se nunca tivessem sido verdade, como se não quisessem observá-la jogada no chão, desnuda, com frio, com fome, rezando encontrar alguém que te cubra e não descubra que as suas lágrimas são como seus amores: elas cortam.
Seu desconhecido.

Espaço

Querido Desconhecido,

O vazio que tanto temes sobrevoa nossas cabeças, atreve-se a mudar de cor e calor; a se fazer chuvoso ou fresco

Ouso falar-te sobre uma terceira eu entre nós; ouso fazer dela quem quer que seja.

Não sei de que ou de quem são feitos seus olhos, mas sei que de antigos amores herdou o café sem açúcar e o frio no peito; por eles, sucumbiu ao vício por palavras mudas; a eles cedeu os nada pontuais beijos.

Esta tarde cruzou o céu nublado por debaixo dos braços e tossiu para si algumas verdades pigarreadas, viveu a devolver o que é seu; a não engolir o que mastigou.

Soluçou por muitos olhares doloridos, perdeu-se por demais esperar.

Agora adora a distância, observa pela janela os pedacinhos dos amores que permitiu deixarem para trás todo seu querer.

Desliza palavras de forma mais doce, enrola em papel fino alguns pretextos para fazê-las tocar em lábios de outrem.

Mas parece que se perdem no ar, fumaça; desfazem-se por dentre os dedos. Tabaco. Assim como eu. Assim como tu.

Tua aflição.

Quatro da manhã

Minha doce aflição,

Ao abrir as suas pálpebras, talvez você não me veja mais da mesma maneira, nem da mesma forma. Não que eu esteja diferente. Não que eu tenha crescido. Não que eu tenha envelhecido. Não que eu tenha mudado. As coisas é que estão diferentes. As coisas é que estão crescendo. As coisas é que estão envelhecendo. As coisas é que estão mudando. E nessas mudanças, parece ter nascido um espaço entre nós. Um espaço invisível, sem borda, sem contorno, sem limites. Um espaço ainda vazio. Um espaço que, como todo espaço vazio, aguarda ser preenchido. Eu me sinto, às vezes, como esse espaço vazio. Será que você está pronta para me preencher? Por favor, não responda. Não quero exatamente palavras ou falas. Quero gestos. Será que você está pronta para me preencher?

Pode me preencher de dúvidas, ofensas, palavras curtas. Pode me preencher de medo, de café, de cigarro, de delírio. Pode me preencher de aflição, de cinzas, de drogas. Pode me preencher de álcool, de conflito, de remédio, de nada. Mas não me deixe vazio, não me deixe vazio, não me deixe vazio, não me deixe.

Seu desconhecido

Letras molhadas, palavras derramadas

Querido Desconhecido,

Mesmo que de nada te chamasse; mesmo que sequer te chamasse, estarias aqui contra a vontade de minha própria desequilibrada razão.

Mesmo que não te ouvisse, ainda desejaria a tua manhã: desejaria ser a primeira a te passar aos olhos quando abrisses o jornal, quando tomasses o primeiro gole do solitário café; quando este te rasgasse peito abaixo durante toda a tarde.

E coisa fácil não é carregar a esperança de ser pelo menos a última, mesmo que rápida e silenciosa, ao fechares os grandes olhos para descansá-los.

Dizes que do meu mal tens ciúmes, mas mal sabes que não te fazer mal sequer bem me faz; não te faço nada, bem ou mal, simplesmente não faço: sei que não sou eu quem te guia rua afora; quem te leva debaixo de sol ou chuva. Corres todos os dias esquivando-te de suas gotas por estar atrasado; atraso-me sempre por correr demais. Mas isso não nos faz olhar para o fim da estrada; não mais tem fim. Estando longe ou perto, somos intocáveis.

Sei que não sou eu quem te faz cócegas no pensamento, que não mais te preocupas em me conquistar... Deus! Estava tão acostumada a ti que conquistar um outro Tu me parece inviável; sequer sei como fiz da primeira vez.
E talvez não queira, talvez não queira querer.

Será que ainda escutas meu chorar sem lágrimas, noite após noite, grudada em diferentes janelas de diferentes quartos de um diferente alguém?

Será que te corrói saber que a distância, agora, mais parece curta que antes parecia? Que nossos corações sossegaram no de outro alguém? Que minha música já não é mais tua; que tuas cartas já não mais têm meu nome?

Não penso mais em querer, afogo todos meus desejos com o rosto no travesseiro. Por mim, já se foi o fim do laço; não consigo alcançar a corda pela qual me puxarias.

Perdoa-me... Perdoa-me por sempre te perdoar.

Tua aflição

Basta você me bastar

Minha doce aflição,

Não precisa me chamar de querido. Não precisa me chamar de “meu”. Nem precisa me chamar. Eu te ouço. Isso já me basta. Ouvir o seu inconsciente me chamar me basta. Ouvir o silêncio distante – sabendo que esse silêncio é seu – me basta. Ouvir suas perguntas – sabendo que eu não tenho as respostas – me basta. Ouvir você não dizer nada, também me basta. E mesmo que, um dia, você resolva nunca mais me chamar eu estarei satisfeito. Você me basta. Pensar em você me basta. Pensar em você me mata. Você me mata.

Basta você esboçar um sorriso qualquer – mesmo irônico, pouco importa - para me deixar um pouco menos triste. Fique feliz por isso. Basta você olhar pela janela e me avisar que está chovendo – eu acredito. Nem me preocupo em abrir a minha para confirmar. Acredito em você. Basta você levantar de madrugada, sem saber onde olhar, sem saber me procurar, sem saber onde me achar, que eu já fico bem só de imaginar você perdida tentando me encontrar.
Basta você começar a fumar, mesmo sabendo que o cigarro não te faz bem, que eu fico com ciúmes – ciúmes do seu cigarro. Eu sei que é quase ridículo sentir ciúmes de algo que não te faz bem – mas eu sinto. Quero ser esse cigarro. Esse cigarro que você fuma pela manhã e deixa pela metade durante o dia para terminá-lo delicadamente à noite, entre seus lábios. Quero ser esse cigarro grudado nos teus dedos, firme, com a certeza que você não vai me largar tão cedo e que mais tarde vou terminar morrendo inteiro na sua boca. Mesmo que você me apague depois, com a maior calma do mundo, como se não tivesse lhe proporcionado nada. Você me mata. E isso me basta. Quero ser esse cigarro que aparece nas tuas fotografias em preto e branco. Esse cigarro que libera a fumaça. A fumaça por trás da qual você se esconde. A fumaça por trás da qual você esconde sorrisos, bondade. A fumaça por trás da qual você esconde uma menina, uma menina que sonha, uma menina que dança, uma menina que some. Pensar em você me basta. Pensar em você me mata. Você me mata. E quando eu morro, eu caio no meu chão. Um chão onde existem apenas migalhas de pães mal-comidos, sobras de mulheres mal-comidas, restos de amores polêmico e um tapete colorido. Um chão onde existem poemas inacabados que nunca serão acabados, retratos envelhecidos que nunca serão renovados, sonhos esquecidos que nunca serão recordados, pedaços de noites desperdiçadas que nunca serão religados, alguns amores platônicos e você descolorida. Até descolorida você me basta. E isso me mata.

Minha doce aflição, eu vivo dizendo que você me mata e você morre calada não dizendo nada. Por quê?

Inventarte

Querido Desconhecido,

Sequer sei por que te chamo de querido; ainda mal sei o que ainda é querer...
Sinto essas vozes passando em branco por mim por todos os dias, desde que percebi que a volta precisa ter ido uma vez; mas que nem sempre a ida tem uma volta.
Será que há outro cheiro que essa música me traria? Será que nunca mais poderei sentir meu perfume sem me lembrar de ti?
Não posso mais me arrepiar com teu sopro em meus lábios, não posso mais te inventar os pensamentos, já que meus desejos não se fazem de tuas vontades, assim como as minhas não fazem tuas intenções.
Então escondo o rosto entre os joelhos, tentando fugir do teu rosto que se planta nas paredes à minha frente; retorço dedos dos pés e acabo imaginando de quem seriam as roupas que poderiam estar espalhadas pelo chão do teu quarto.
Na verdade, são espalhadas essas cartas curtas, curtas, certas e precisas: não esperam nada de volta; preocupam-se em vomitar monólogos afiados que perfurariam corações sem direito de resposta.
Meus soluços me atentam ao nublado lá fora: esquecera de notar a chuva que há pouco começou a espernear asfalto abaixo: como queria, o mundo acabou... mas não como imaginei.